"Uma inclusão que toca e transforma": a Síndrome de Down aos olhos da FENACERCI
O Dia Internacional da Síndrome de Down, celebrado a 21 de março, representa uma oportunidade crucial para reforçar a consciencialização e a promoção da inclusão. Neste contexto, entrevistámos Joaquim Pequicho, vice-presidente da FENACERCI (Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade Social), associada da PDH. Damos a conhecer o impacto do trabalho desenvolvido pela FENACERCI na defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
PDH: A FENACERCI tem desempenhado um papel fundamental na promoção da inclusão social e na defesa dos direitos das pessoas com deficiência intelectual e/ou multideficiência. Quais são as principais estratégias da organização para garantir que os direitos humanos dessas pessoas sejam efetivamente respeitados e promovidos, tanto em nível nacional quanto local?
JP: Em termos estratégicos, temos tido um “olhar” sobre os direitos das pessoas e exigido a implementação prática dos mesmos, bem como apostado num importante diálogo sobre os caminhos da inclusão. Temos procurado que esse diálogo seja pautado pela total abertura, transparência e profundo compromisso, resultando, assim, numa maior garantia e segurança para as pessoas que apoiamos e para a população em geral.
A FENACERCI tem defendido a inclusão como um bem público, não apenas materializada nos apoios ou nos recursos disponibilizados pelo Estado e pelas organizações, mas como uma ação contínua de cidadania, na qual os direitos das pessoas são respeitados.
“Investimos na capacitação dos diferentes agentes, de forma a que pessoas com Síndrome de Down sejam entendidas como homens e mulheres de direitos, com sonhos, expectativas e ambições legítimas.”
PDH: Ainda existe a ideia muito estereotipada de que pessoas com Síndrome de Down são eternas crianças, dependentes de forma física e emocional. Sabemos que essa visão nem sempre corresponde à realidade. Quais são as estratégias adotadas pela FENACERCI para ajudar a combater este estigma? E como nós, sociedade, podemos combatê-las (ainda que em pequena escala)?
JP: Os estereótipos são um facto inegável que tentamos ultrapassar por via da educação, capacitação das comunidades e pela desconstrução das suposições e generalizações. Pensamos que devemos continuar a desafiar os estereótipos através da valorização do papel de cada um, da afirmação da sua diversidade, assim como promover as condições de oportunidade para que a igualdade seja efetiva e os preconceitos ou estereótipos dissipados.
No contexto interno das organizações, investimos na capacitação dos diferentes agentes, de forma a que as pessoas com Síndrome de Down sejam entendidas não como “meninos”, mas como homens e mulheres de direitos, com sonhos, expectativas e ambições legítimas. Este trabalho inclui a criação de oportunidades concretas de participação, autonomia e desenvolvimento pessoal e profissional, sempre orientado por uma abordagem inclusiva e respeitosa.

PDH: A partilha da rotina de pessoas com Síndrome de Down na Geração Millennial e a Geração Z têm tido um grande impacto nas redes sociais, existindo várias contas de Instagram e Tik Tok dedicadas ao tema. Acredita que esta presença online pode influenciar a perceção da sociedade e, de certa forma, ajudar a combater os mitos associados a pessoas com DID?
JP: Acreditamos que a presença online de pessoas com Síndrome de Down, tem um impacto muito positivo na perceção da sociedade. Estas plataformas permitem que as próprias pessoas com DID ou os seus familiares partilhem rotinas, conquistas e desafios do dia-a-dia, mostrando a sua autenticidade e diversidade. Ajuda a combater mitos e preconceitos, pois permite que a sociedade veja essas pessoas como indivíduos completos, com interesses, talentos e sonhos únicos. Consideramos que este fenómeno digital contribui para sensibilizar o público sobre a importância da inclusão, incentivando mudanças de atitude e promovendo uma cultura de respeito e valorização das diferenças.
Esta não pode ser entendida como uma ação isolada, mas sim complementar a todas as outras que integram uma estratégia de afirmação dos direitos. Contudo, defendemos que é fundamental reconhecer que, embora as suas histórias sejam inspiradoras, estas pessoas não precisam ser idealizadas para que os seus direitos sejam respeitados. Temos de ser prudentes, sem criar expectativas irreais ou reduzir as suas identidades à superação constante de dificuldades. Afinal, o objetivo é que possam viver de forma plena e digna, como qualquer outra pessoa!
“A verdadeira inclusão não é um esforço isolado, mas uma forma de viver, um compromisso que se vai refletir nas relações, no acolhimento e na empatia, seja no mundo físico ou digital.”
PDH: Tendo em conta esta dinâmica digital que dá visibilidade às questões sociais, de que forma a FENACERCI faz – ou pretende fazer – uso destas plataformas para influenciar as políticas públicas e as atitudes sociais em relação às pessoas com Síndrome de Down?
JP: A FENACERCI reconhece e acredita no poder transformador e de influência que as plataformas digitais têm em termos sociais e na implementação de políticas públicas mais inclusivas. No entanto, consideramos que devemos assegurar a consistência dessas políticas públicas, estabelecer um diálogo com os decisores políticos e capacitar as organizações, os profissionais, os dirigentes, as famílias e as comunidades como agentes de mudança de inclusão. Não temos uma visão conservadora e não negamos o importante papel das redes sociais, mas defendemos que a inclusão é fruto do envolvimento, dos diálogos, da compreensão e da qualificação das comunidades e dos seus agentes, numa lógica de proximidade.
Mais do que isso, deve ser usada como um ponto de partida para construir uma conexão verdadeira e contínua com os outros. A inclusão precisa ir além daquilo que é postado nas redes sociais: deve ser algo que habite o nosso jeito de ser, de agir, de relacionar. A relação com o outro tem de ser genuína, e as ações e as palavras refletidas em atitudes que vão além da tela, criando um espaço onde todos se sintam verdadeiramente parte. Esse é o caminho para uma inclusão que faz sentido, que toca, que transforma!

PDH: No contexto do emprego, o papel ativo das pessoas com Síndrome de Down no mercado de trabalho é cada vez mais reconhecido pela sociedade. Existe algum projeto ou exemplo que ilustre na perfeição como esta inserção representa uma mais-valia para as empresas e sociedade?
JP: Existem vários exemplos! Um projeto bastante conhecido e que tem sido um exemplo de sucesso é o “Down Syndrome International Employment Project”, que visa promover a inclusão laboral de pessoas com Síndrome de Down em diferentes países. Em Portugal, os nossos Centros de Formação e Centro de Recursos para Qualificação e Emprego têm feito um trabalho fantástico, menos visível, mas essencial na empregabilidade das pessoas com deficiência intelectual.
PDH: Em 2024, a ONU sublinhou a crescente necessidade de melhorar o acesso a serviços de saúde e educação para pessoas com Síndrome de Down. No contexto português, como tem a FENACERCI trabalhado para promover estas melhorias?
JP: No que diz respeito à saúde, a FENACERCI tem promovido a sensibilização dos profissionais de saúde para as necessidades específicas das pessoas com Síndrome de Down, como acompanhamento médico regular, cuidados preventivos e monitorização da saúde mental. Temos colaborado com várias com entidades públicas e privadas, para garantir que os serviços de saúde sejam acessíveis e adaptados a essas necessidades. Temos procurado a mobilização do setor da saúde – em particular com o Ministério da Saúde -, para responder a uma exigência de melhoria no acesso das pessoas com deficiência intelectual e ou multideficiência a cuidados de saúde adequados.

“É imprescindível mantermos um diálogo aprofundado sobre os desafios sociais resultantes do envelhecimento das pessoas com deficiência e das suas famílias.”
PDH: Ainda na temática da saúde, um dos principais temas da 30.ª edição da Revista FENACERCI foram as questões relacionadas com o envelhecimento em pessoas com DID, um processo que muitas vezes coincide com o envelhecimento das próprias famílias, a principal rede de apoio e cuidado. Considera a resposta a estes problemas um dos principais desafios atuais enfrentados pela FENACERCI?
JP: É imprescindível mantermos um diálogo aprofundado sobre os desafios sociais resultantes do envelhecimento das pessoas com deficiência e das suas famílias. Torna-se igualmente necessário debater o impacto da demência e as complexidades associadas ao diagnóstico duplo (isto é, quando a pessoa com deficiência intelectual desenvolve uma doença mental), situação para a qual é necessário encontrar respostas adequadas e qualificadas.

PDH: É sabido que a FENACERCI está inserida em vários projetos de parceria nacional e europeia. Quais os principais benefícios deste trabalho em rede, e como se refletem na vida de pessoas com Síndrome de Down?
JP: A FENACERCI tem uma longa trajetória de colaboração em projetos de parceria, tanto a nível nacional quanto europeu, e este trabalho em rede traz uma série de benefícios significativos para as pessoas que apoiamos. A troca de experiências, conhecimentos e boas práticas entre diferentes organizações e países, permite a criação de soluções mais eficazes e inovadoras que têm um impacto direto no campo da educação, saúde, inclusão social, da inclusão comunitária e direitos das pessoas com deficiência. Podemos dar a título de exemplo, as preocupações com a acessibilidade na justiça.
O resultado do nosso trabalho em parceria permitiu recentemente a produção do Guia de Acesso à Justiça, que aponta para a necessidade de introduzir garantias legais para uma comunicação efetiva, garantir o acompanhamento por uma pessoa de confiança durante as diligências e a implementação de mecanismos que permitam avaliar as necessidades individuais em termos de adaptações processuais.
PDH: Qual a maior mudança que deve ocorrer nos próximos anos para transformar significativamente a vida e rotina das pessoas com Síndrome de Down?
JP: Na nossa opinião, a maior mudança que deve ocorrer nos próximos anos para transformar significativamente a vida das pessoas passa por estratégias de inclusão comunitária e pela valorização do papel das organizações como estruturas de apoio de base comunitária. Estas transformações exigem um compromisso coletivo.